terça-feira, 15 de julho de 2014

MOTIM A BORDO DA NAU BRASILEIRA.
por Milton Saldanha*

Vi duas vezes na TV um bom filme norte-americano que conta a história da tripulação de um velho navio de guerra. No meio de uma tempestade, o comandante entra em pânico, sofre um apagão, nada decide, e o navio só não afunda porque alguns subalternos assumem as operações. O caso dá um rebu danado, porque teve sabor de motim e afetou a hierarquia, coisa sagrada na caserna. Acaba num tribunal militar, onde finalmente a defesa dos subalternos consegue provar a insanidade do comandante.

As cenas dos jogadores brasileiros, do banco, passando instruções aos que jogavam, com o inerte Felipão ao fundo, me lembraram aquele filme. Aquilo foi um ato de rebelião explicita, no meio da tempestade. Eu nunca tinha visto algo assim no futebol, nem em time de várzea. Mas, ao contrário do velho navio de guerra americano, ali o comandante não esboça a mínima contrariedade com seus comandados. Quando voltam ao porto, no nosso caso a Granja Comari, em Teresópolis, nada acontece. Pelo contrário, a impressão que tive, com o jogo ainda em campo, é que o próprio Felipão tinha liberado geral, em seu desespero de saber que seu limite de competência profissional estava esgotado, no limite, e seria impossível, sozinho, evitar o naufrágio. 

A diferença entre o filme e nosso jogo é que o navio lutou contra as ondas, chuva e vento, mas voltou inteiro ao porto. Nosso time, ao contrário, acabou destroçado e afundou num mar de humilhação.

Aquela suposta união do grupo, chamado de família, como nas máfias, foi um grande blefe. Ali todo mundo disputava posições, o que é normal. E ninguém ousaria contestar o cacique, autoritário, o que significaria decretar o próprio corte, ou, no mínimo, o limbo no banco. A própria insistência do técnico em enfatizar a todo momento expressões como “meus jogadores”, como se fossem dele e não da Seleção Brasileira, atestam sua prepotência. 

Nossa cultura preserva uma herança colonial do poder centralizado. Do presidente da República ao micro-empresário, o manda-chuva decide tudo. Consulta popular? Imagine, isso é coisa da Suíça, que costuma fazer referendos para tudo. Todos nós pagamos a Copa, mas ninguém nos consultou se queríamos isso. 

A Seleção deveria ser convocada por um colegiado, com debate transparente e decisões votadas. Isso nos livraria de novos felipões, cabeçudos e autoritários. 

Mas, voltando a suposta “união do grupo”, vamos pensar juntos, lembrando do empresário do Neymar, que criticou duramente, e publicamente, o Felipão. Alguém acredita mesmo que ele faria aquilo sem o aval do patrão? Ah, mas Neymar disse na coletiva que puxaria a orelha do seu servidor. Claro, isso fazia parte da farsa. Pegaria super mal algum jogador chutar o cachorro morto. O motim em campo foi explicito, como no navio do filme, mostrando que se havia mesmo um grupo, o comandante não fazia parte dele.


Milton Saldanha, 68 anos, gaúcho, é jornalista desde os 17 anos. Trabalhou na imprensa de Santa Maria (RS) e Porto Alegre. Vive em São Paulo há mais de 40 anos. Passou por muitos empregos, entre eles Rede Globo, Estadão, TV Manchete, Diário do Grande ABC, Jovem Pan, revista Motor3, Ford Brasil, IPT, Conselho de Economia e vários outros, inclusive na Ultima Hora. Ao se aposentar, criou o jornal Dance, já com 19 anos. É autor dos livros “As 3 Vidas de Jaime Arôxa” (Editora Senac Rio); “Maria Antonietta, a Dama da Gafieira” (Phorte Editora) e “O País Transtornado” (Editora Movimento, RS) onde conta 60 anos da recente História brasileira. Participou da antologia de escritores gaúchos “Porto Alegre, Ontem e Hoje” (Editora Movimento)

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