O economista Eduardo Giannetti da Fonseca, um dos mais brilhantes pensadores brasileiros da atualidade, faz uma observação extremamente oportuna, e sobre a qual não vi ninguém falar antes: a Copa do Mundo, a cada quatro anos, coincide com o calendário eleitoral brasileiro de escolha do presidente da República. Isso tira o foco do debate político, tão essencial ao amadurecimento da democracia e politização do eleitor. Gasta-se energia discutindo futebol num momento em que deveríamos estar avaliando o Brasil, nossas vidas, o futuro e nosso destino.
O futebol, goste-se ou não dele (eu gosto muito), é alienante. Acima das chuteiras e dos estádios monumentais, existe algo mais importante a se discutir, que é nossa unidade pacífica como federação. Isso tem que envolver o amplo debate político, que em última análise será nosso acordo social: como organizaremos o Estado e como dividiremos a renda, não pela utopia igualitária, mas pelo menos reduzindo as disparidades absurdas que causam a miséria e o conflito. Esse acordo, proposto pelos candidatos, acontece no debate eleitoral e se cristaliza no voto, prevalecendo a vontade da maioria. Se depois o acordo será cumprido é outro debate. Geralmente não é, ou só acontece parcialmente. Mas a democracia, ainda que capenga, funciona assim.
Ora, quando entra um evento catalisador como a Copa do Mundo justamente num período em que o debate político é necessário, seja para continuar como está, melhorar ou mudar de vez, a sociedade toda perde com isso. É o debate das idéias, seja para apoiar o governo, ou para divergir dele, que leva ao amadurecimento. Sem isso, a escolha do eleitor será sempre difícil, e determinada geralmente por detalhes banais, como simpatia e até beleza física. Olha-se a pessoa e não o conjunto de interesses que ela representa. Nunca é pequeno o preço a pagar depois por tanta irresponsabilidade. Quem vota errado, sem perceber está votando contra si próprio. É o caso, muito comum, de pobre ou remediado que vota em candidato de rico.
Entre 1945, final da ditadura Vargas, e 1964, inicio da outra ditadura, o Brasil passou por intenso processo de politização, urbana e rural. O golpe, sem nenhum programa econômico e administrativo, e com interferência óbvia dos Estados Unidos, foi feito apenas para preservar interesses mesquinhos do capital e mais dois objetivos: conter esse processo, no auge da Guerra Fria e com o episódio Cuba então latente e na primeira linha da pauta internacional; e dividir o Brasil, enfraquecendo-o, na estratégia do Pentágono, que nunca achou interessante a idéia de uma potência emergente no continente. Essa última tese, repleta de lógica, não é minha. Era a visão do chanceler Santiago Dantas, homem culto, bem informado e de grande trânsito na diplomacia mundial. Ao rejeitar a resistência, que provocaria uma guerra civil, João Goulart, aconselhado por Dantas, frustrou nossos amigos gringos: o Brasil passou pela tragédia de viver 21 anos sob uma ditadura, mas permaneceu inteiro e indissolúvel, sem se transformar numa nova Coréia.
Esses períodos dos ditadores, sem vida política, portanto sem debate e sem liberdade de escolha dos cidadãos, fomentaram uma brutal alienação. Muitas pessoas chegaram à metade de suas vidas sem jamais ter votado para presidente da República. Some-se a isso a debilidade do ensino, onde é raro o exercício do contraditório. São fatores que explicam as baixarias das redes sociais, com rara vida inteligente.
Ao misturar eleições e Copa do Mundo no mesmo ano, como bem observa Eduardo Giannetti, perdemos uma valiosa oportunidade de exercer a prática democrática, refletir e evoluir.
Ao se deslocar pessoalmente para a Suiça para trazer a Copa para o Brasil, mesmo sendo um evento privado, a Fifa é uma entidade privada, Lula apostou suas fichas nesse desvio de atenção do eleitor. E pior: iludido por seus amigos cartolas, gente sem nenhum escrúpulo moral, apostava no êxito da Seleção Brasileira. Sem reflexão, crítica e debate, tudo fica mais fácil para quem deseja se eternizar no poder. E, de certo modo, também para uma oposição fraca e sem propostas, além de carente de moral para criticar quando o tema é corrupção.
Só que Lula caiu do cavalo. Tirando os interessados, que sempre ganham nas sacanagens, não conheço uma única pessoa esclarecida e de bom-senso que tenha sido a favor dessa Copa no Brasil. Não será pelo fim do evento no dia 13 de julho, nem pela beleza do espetáculo, que o assunto está encerrado. Há muita coisa a explicar, a começar pelo custo absurdo das obras dos estádios. E que tal discutir também as renúncias fiscais sobre os ganhos da Fifa, lesivos ao povo brasileiro?
Quando, finalmente, e com pouco tempo para isso, começar o debate político, os brasileiros ainda estarão discutindo se Felipão errou ou acertou, se William teria sido melhor no lugar do poste Fred, se a bola deveria continuar redonda ou ser oval... Fora os efeitos frustrantes da derrota, gerando apatia e mau humor coletivo. Imaginem isso numa realidade de grande rejeição aos políticos. Será interessante olhar com atenção o número de votos em branco.
Enquanto isso, educação, saúde, segurança, arrecadação, investimento público, e tudo o mais que realmente interessa discutir, foi para o ralo.
* Milton Saldanha, 68 anos, gaúcho, é jornalista desde os 17 anos. Trabalhou na imprensa de Santa Maria (RS) e Porto Alegre. Vive em São Paulo há mais de 40 anos. Passou por muitos empregos, entre eles Rede Globo, Estadão, TV Manchete, Diário do Grande ABC, Jovem Pan, revista Motor3, Ford Brasil, IPT, Conselho de Economia e vários outros, inclusive na Ultima Hora. Ao se aposentar, criou o jornal Dance, já com 19 anos. É autor dos livros “As 3 Vidas de Jaime Arôxa” (Editora Senac Rio); “Maria Antonietta, a Dama da Gafieira” (Phorte Editora) e “O País Transtornado” (Editora Movimento, RS) onde conta 60 anos da recente História brasileira. Participou da antologia de escritores gaúchos “Porto Alegre, Ontem e Hoje” (Editora Movimento)
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