quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

UM CONTO:
A HISTÓRIA DE UMA CASA.
Por Chico Lelis*

                                                                                                                                                               Foto: Blog do Ralph Giesbrecht

Era uma casa charmosa. Não exatamente bonita pelos padrões atuais de arquitetura, mas muito, muito charmosa. De rara elegância.

E era também orgulhosa. Sabia que era a mais bem tratada da rua dos Albéricos (ninguém nunca soube o porquê do nome, nem conheceu ninguém com ele que lá tenha morado). Seus encanamentos eram de primeira, em cobre, assim como a parte elétrica. Tudo com manutenção preventiva. O telhado era um primor e abrigava um simpático sótão, usado como atelier de costura e também escritório. Pé direito com quase 4 metros de altura, azulejos portugueses, todos os cômodos grandes e uma largueza de cozinha e copa. Aqueles armários, despensa, lavanderia, quarto de empregada, com banheiro anexo. Muito melhor que os empreendimentos modernos com varanda gourmet.

Pintura? Todos os anos. Pena que não podia palpitar na cor. Bem que gostaria. Iria pedir aos Souza que usassem uma tal de marrom-toledo, pois, pelo som, ela lhe cairia muito bem.

Mas, naquele ano o amarelo-claro era a cor. No jardim, girassóis, camélias, rosas e margaridas encantavam os passantes. No quintal, a horta abrigava pés de tudo. Tinha  couve, alface, tomate, cebolinha, coentro, cheiro-verde, abobrinha, pimenta, e tudo o que se quisesse imaginar. Tempero não precisava comprar, pois ali de tudo se encontrava.

Tinha também mamona, ótimo produto para manter fortes e bonitos os cabelos, comigo-ninguém-pode e espada de São Jorge para “proteção” da família. Algumas bananeiras, dois pés de “mixirica”, outro de carambola, que hoje chamam de estrela e vai até em salada, e um de jabuticaba. Uma delícia de quintal! Ah, tinha também alguns patos, galinhas, que produziam ótimos ovos. Tudo muito bem cuidado pela vó Eva que também respondia pela cozinha, com a ajuda da Luzia, sua simpática colaboradora há mais de 30 anos. Juntas elas faziam coisas que até os deuses chegavam para almoçar ou jantar.

Por dentro, uma decoração simples e aconchegante. Seus donos eram ‘do bem”. Gente boa mesmo. Nos quartos das crianças, a decoração, se é que se pode chamar assim, era resultado da idade de cada um: a menina, com 11 e o garoto, com 14. No do Sérgio, hoje quase avô, fotos do Pelé  e Garrincha e Cláudia Cardinale nas paredes. E uma bagunça em volta da escrivaninha, com as meias, tênis, shorts e camisetas, sempre fora do lugar. Na época ainda não existiam as modernidades eletrônicas dos dias atuais.

No da Flávia, que hoje viaja pelo mundo fazendo palestras sobre o meio ambiente, tudo arrumadinho. A escrivaninha sempre correta e fechada após o uso. Cada coisa no seu lugar, inclusive as bonecas, sempre penteadas e usando roupinhas limpas. Uma doçura!

Mas cada um era dono do seu nariz e, neste aspecto, ninguém se intrometia no quarto alheio.

Na suíte dos pais, Carlos e Maria Ignês, um ambiente com cara de pais. Nada mais, nada menos. Uma Sonata para tocar os LPs românticos nos momentos íntimos do casal, uma bela e antiga penteadeira, armários embutidos combinando. Tudo muito bem cuidado, se bem que, vez por outra, sobrava um par de meias, masculinas, (sempre elas) ao lado da cama.

A casa não poderia estar melhor localizada. A rua era  larga, “tranquila”, muitas árvores, pavimento ainda em bom paralelepípedo e apenas trânsito local. As casas vizinhas tinham características muito semelhantes, mas não eram como ela. Eram todas muito bem cuidadas, com suas calçadas sempre limpas e muros baixos que deixavam ver seus jardins, mas não tão bonitos como o da 148, onde moravam os Souza.

Quem morava na rua?

Pessoas tão boas quanto os da casa 148. Tinha comerciante, bancário. Do Banco do Brasil, claro! Dois médicos, um doutor engenheiro da Light. Aposentados que moravam com seus filhos, como a dona Eva, que era a dona da casa. Tudo gente boa, que se conhecia desde sempre. Gente que se dava bem. Tão bem que geraram alguns casamentos ali na rua mesmo. A Cidinha, do 35, por exemplo, casou com o Jorge, do 38. Passaram muito tempo se olhando das respectivas janelas. Depois, tinham uma janela só. Seus dois filhos ganharam também suas janelas. Moravam com o pai dela, aposentado.

De vez em quando, surgia uma briga de moleques. Mas era  tudo resolvido na hora, com um ou outro puxão de orelhas. E a vida na rua voltava ao normal.

Os cães andavam por lá, meio que soltos. Os gatos também. Mas não havia chance de brigas. Não que a harmonia da rua influenciasse cães e gatos, tornando-os amigos. É que, por uma razão de segurança, os gatos andavam sempre sobre os muros, só correndo riscos quando atravessavam de um lado para o outro.

E não pensem que aquela era uma rua numa cidadezinha longe da capital. Era ali mesmo, na grande metrópole, mas tinha a cara de viela de cidade do interior. E das pequenas.

A casa se sentia muito feliz ali.

Pela manhã, o movimento das crianças, que saíam de casa, malas nas mãos (ainda não haviam inventado a mochila escolar), chutando pedras, chamando os amigos atrasados, fazendo confusão com os cachorros, espantando os gatos. Quando a molecada ia pra escola, o sossego da rua acabava e ninguém mais dormia naquela rua. Mas era coisa de 10 15 minutos e a paz voltava.

A vida era harmoniosa na rua daquela casa.

Mas, num dia qualquer, a rua dos Albéricos acordou mais cedo,  com um bando de pessoas estranhas andando de lá pra cá, de cá pra lá. Carregavam nas mãos uma coisa que mais parecia um binóculo. - O que estariam fazendo ali? - pensou a casa dos Souza.

- Que povo é este tirando a tranqüilidade da nossa rua? Indagou a casa a si própria, sem resposta.

- Que tanto eles olham com aqueles binóculos? Estão me vigiando. Tenho certeza disso. Por quê? Será que estão me medindo para aumentar o IPTU? Coitado do meu dono, já gasta tanto dinheiro com imposto e não recebe nada em troca.  Paga IR, INPS, “I” isso, “I” aquilo e nenhum retorno. Ele também paga a Guarda Noturna. A única coisa boa grátis era a escola pública, que perdeu a qualidade depois do período militar e nunca mais se recuperou. Ela lembrou que ele também fazia poupança para ter uma aposentadoria decente, porque se fosse depender do governo, ia morrer de fome quando parasse. É só imposto, imposto, imposto. E muita promessa.

Os homens de “binóculos” ficaram por ali de um lado pro outro, anotando, anotando, pela manhã inteira e se foram sem que ninguém conseguisse descobrir do que se tratava. E as vidas da rua e da casa 148 voltaram ao normal.

É preciso abrir parênteses para contar que ninguém soube do que se tratava porque, justo naquela manhã a dona Pura, a fofoqueira, que sabia de tudo,  na rua, tinha ido ao Centro, para compras, e só voltou à tarde.

Tempos depois, antes que ela conseguisse saber o que acontecia, os moradores da rua receberam um questionário da prefeitura perguntando sobre seus destinos: dali, iam pra onde? Centro, outro bairro, fora da cidade? Não havia explicações para as perguntas. As pessoas estavam satisfeitas com suas vidas?

Gentis que eram, responderam sem dar muita atenção à pesquisa. Todos é modo de dizer, porque a dona Terezinha, da casa 53, não respondeu. Era gente boa, mas muito rabugenta e avessa a que alguém se metesse na sua vida.

- Pra que querem saber da minha vida? Eu vou pra onde quero! - esbravejou!

Mas, num outro dia, ensolarado, em que cães e gatos seguiam cada qual pelo seu caminho, apareceu uma perua com alto falante - exatamente como aquelas que vendem “Pamonhas, pamonhas fresquinhas de Piracicaba” - anunciando “uma nova vida no bairro”. O locutor falava de transporte público, linhas de ônibus, melhor acesso ao centro.

Faixas foram colocadas anunciando a criação de linhas de ônibus para “facilitar” a vida de todos.

E, o pior: a prefeitura iria asfaltar a rua dos Souza.

A casa não entendia nada. Nunca soubera que alguém na rua reclamara da falta de nada. Ela, nas conversas com as outras casas, só ouvia elogios para o sossego do lugar.

E, se a casa não entendia, os moradores muito menos. Afinal, a escola era perto e a molecada ia e voltava a pé.  Para ir ao centro, quem não tinha carro, não se importava de andar três quarteirões para pegar o ônibus da avenida. O paralelepípedo, que fora bem assentado, não causava problemas, a não ser quando o “boyzinho” da 147 acelerava demais o Opalão do pai em dia de chuva. Era o maior auê e uma enxurrada de reclamações da rua inteira.

- Devem ser aquelas coisas de político que inventavam (e inventam até hoje) pra atormentar a vida das pessoas. Onde já se viu – esbravejava dona Terezinha – ônibus na nossa rua?! Aqui vai virar um inferno, ainda bem que o falecido não viu isto, porque ele iria morrer de tristeza.

Aquilo uniu ainda mais os vizinhos dos Souza. Fizeram inúmeras reuniões, prazerosamente fornidas de bolinhos de chuva que a dona Eva preparava com esmero e carinho. Foram falar com o vereador do bairro que, claro, lamentou-se, esquivou-se e nada resolveu, como sempre fizeram e fazem, ainda, todos os políticos desta terra descoberta por Cabral.

Correram à prefeitura e lá o alcaide também tirou o corpo fora, dizendo que não podia impedir o “progresso”.

E ele chegou com o asfalto, linhas de ônibus, um roubo aqui, outro ali. E com a maior das tristezas. Dona Terezinha ficou doente, os filhos venderam a casa e foram todos embora. O vizinho dela também desistiu de enfrentar aquela bagunça e foi-se. No lugar das duas casas surgiu o magnífico “Chateaux La Plage”, que tinha apartamentos com cinco suítes, 18 vagas de garagens, segurança máxima, piscina, quadra de tênis, de bocha, academia de ginástica. Um primor de lançamento. Mas, mesmo com a enorme garagem, sempre tinha muito carro sobrando e já não havia como parar carros dos visitantes na rua dos Souza.

Mais gente se mudou deixando terrenos para novos e modernos empreendimentos imobiliários. Cada vez mais sofisticados. Cada vez maiores e mais altos.

E a casa foi ficando preocupada com aquilo. O próximo prédio tomou-lhe o sol. Era o fim do jardim da dona Eva. E junto com ele foi boa parte do pomar e toda a horta. Sobrando mesmo só as bananeiras, a “comigo ninguém pode” (e não pode mesmo) e um pálido pé de “mixirica”.

Naquele ano a pintura não foi programada. Nem executada. Um problema no chuveiro das crianças não foi reparado em definitivo, apenas um consertozinho. Algo havia na casa dos Souza e ela começou a ficar preocupada. Mais ainda quando foi programada uma viagem de férias de todos. Antes de viajarem, os Souza falaram sobre os problemas da rua, da dificuldade em viver sem o sol, sem os amigos que os haviam deixado, praticamente sozinhos nas ruas. Até os gatos sumiram.

E saíram em férias.

E lá deixaram a casa, fechada, às escuras, sem sol e sem o canto dos pássaros que há muito deixaram de “freqüentar” aquela outrora pacata e atraente rua para os bichos de penas.

Foi duro para ela. Estava desesperada diante do abandono. E começou a usar todos os meios para comunicar-se com outras casas. Mandava mensagens pelas antenas da TV, pelo fio do telefone, fios da Light, canos de água, pelos passarinhos.

Pedia socorro.

Sabia que estava prestes a desaparecer e ter suas portas e janelas em pinho de riga serem disputadas por um alto dirigente da indústria automobilística, que era louco por elas.

Mas ela não ia entregar os pontos assim, sem lutar. E continuou pedindo socorro a outras casas.

Quase um mês depois, a família voltou, sem muito entusiasmo, para a rua dos Albéricos. Para a casa 148.

Ao pararem no portão, encontraram um terreno vazio.

Assustaram-se. A vó Eva não acreditava no que via e pensava se as imobiliárias teriam tido a ousadia de demolir a casa na marra – afinal, neste País, tudo é possível mesmo, não é?

Todos desceram do carro, abriram o portão e viram aquela placa, bem no centro do terreno:

MUDEI PARA A RUA DA ALEGRIA, 77.
LÁ VOCÊS SERÃO BEM-VINDOS.

Obs: a Rua da Alegria tinha apenas casas. A dos Souza estava pintada de marrom-toledo.










chicolelis - chicolelis@gmail.com - Jornalista com passagens pelos jornais A Tribuna (Santos), O Globo e Diário do Comércio. Foi assessor de Imprensa na FordGoodyear e, durante 18 anos gerenciou o Departamento de Imprensa da General Motors do Brasil. Assina a coluna “Além do Carro”, na revista Carro, onde mostra ações do setor automotivo nos campos Social e Ambiental.