Ganhara dos filhos. Era um lindo par de sapatos. Marrons, como ele gostava.
Lembravam muito o velho e bom "Indio Mock", da Clark, de saudosa memória. Macio, solado de borracha.
Confortável, super confortável!
Trazia, junto com a lembrança do "índio", todos os sabores de aventuras e prazeres da juventude que já se fora há alguns anos. Estava ansioso para usá-lo, mas não o estrearia logo. Aguardaria uma ocasião especial. Afinal, o sapato era também especial. Presente dos filhos, com suas primeiras mesadas, e queria uma estreia com sabor de retomada da juventude. Tinha que ser mesmo particularmente especial, como o presente era. Algo digno daquele sapato.
Esperou alguns dias e, finalmente, a oportunidade chegou. Parecia ter sido criado para aquela a "inauguração". Era como uma noite de gala na Ópera. O sapato estava ali, ainda no saco de flanela. Virgem, esperando pelo instante de abrigar o pé daquele que lhe tratava com tamanha pompa e circunstância. Por ser novo, o sapato jamais ouvira falar de algo assim. Tanta atenção para alguns pedaços de couro unidos por costuras. Só os velhos sapatos têm sabedoria para entender isso.
As mãos chegaram a tremer quando o sapato foi tocado. Os pés sentiram também a mesma sensação ao mergulharem naquele novo par. Ficaram confortáveis, bem instalados. Mas havia algo que lhe causava um grande calafrio. Examinara bem. O couro era da melhor procedência. Tinha forro e uma ótima palmilha. As costuras com traçado firme. Um acabamento mesmo de primeira.
Os filhos souberam escolher.
Finalmente na porta de casa. Rumo ao grande acontecimento. E, apesar de muito bem calçado, jamais chegou ao destino.
E, daquele dia em diante, usando aqueles lindos sapatos, jamais chegou a lugar nenhum que programasse. Queria ir para o sul. Seguia rumo ao leste. Deveria seguir pela esquerda, mas acabava indo pra direita. Sempre assim!
Com ele calçado, sua vida perdera a direção. Não mais conseguia mandar em seu rumo. Um dia, em desespero, olhou para os pés e pensou no que estaria acontecendo. Porque não mais obedeciam ao comando do seu cérebro. Mexeu os dedos. Esfregou pé no pé e não achava a resposta.
Resolveu consultar um psiquiatra-ortopedista, mas não sem antes fazer uma última tentativa. Calçou novamente os sapatos. Surpresa! Ali estava a resposta para todos os rumos errados. Para todas as desobediências de caminho.
Seus lindos sapatos tornavam-se horrivelmente tortos em seus pés. Ele jamais percebera isso, Não havia mesmo como chegar a ponto algum pré-determinado com eles nos pés. Nem GPS/Waze que o levassem ao destino programado. Com eles, tortos, não tinha como determinar um rumo. Iam mesmo para qualquer lugar. Qualquer direção.
Tirou os sapatos. Calçou outro e foi para onde quis. Jogar seus lindos sapatos fora? Qual o que!
Guardou-os cuidadosamente no saco de flanela. Para usá-los quando quisesse sair por aí.
Sem rumo!
* chicolelis - chicolelis@gmail.com - Jornalista com passagens pelos jornais A Tribuna (Santos), O Globo e Diário do Comércio. Foi assessor de Imprensa na Ford, Goodyear e, durante 18 anos gerenciou o Departamento de Imprensa da General Motors do Brasil. Assina a coluna “Além do Carro”, na revista Carro, onde mostra ações do setor automotivo nos campos Social e Ambiental.
* chicolelis - chicolelis@gmail.com - Jornalista com passagens pelos jornais A Tribuna (Santos), O Globo e Diário do Comércio. Foi assessor de Imprensa na Ford, Goodyear e, durante 18 anos gerenciou o Departamento de Imprensa da General Motors do Brasil. Assina a coluna “Além do Carro”, na revista Carro, onde mostra ações do setor automotivo nos campos Social e Ambiental.
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