Foto: vermelho.org.br |
Certo dia, voltando para Santos, meu caminho foi bloqueado por um acidente e tive que dar uma enorme volta, passando por lugares que me remeteram à infância. O que mais me marcou neste “passeio” foi ter entrado em uma rua de terra (culpa do Waze) e ver crianças jogando bola, exatamente como eu fazia com meus amigos na Rua Tarqüinio (nomes próprios mantêm o trema), Silva no Marapé na minha cidade.
Parei para assistir e vi, em cada um dos moleques (havia até mesmo uma menina), todos os meus amigos da rua. Estavam lá o Rivaldo, o Roberto (eram dois), o Ricardo, o Walter, José, Paulo Roberto, eu, o Chico comprido (eu, moleque, já tinha mais de um 1,80m de altura) e outros tantos que não lembro mais. Ah! Tinha o Zecaganha, que pelo nome dá para ver que era um vencedor. Merecia, ele jogava bem.
Mas, a grande figura do time o “Gôdimim”, cujo nome não lembro mas acho que era “alguma” coisa Alberto. Era o artilheiro do time e a cada gol saia gritando “gôdimim, gôdimim, gôdimim”, engolindo o “l”. E lá ia o goleiro pegar a bola no quintal da dona Pura, uma senhora rabugenta, mas encantadora ao mesmo tempo.
Ruim era quando a bola, feita de meia de seda de mulher, recheada de jornal, caia na valeta ao longo da rua. Aí o Gôdimim ia até sua casa e pegava uma meia velha de uma das três irmãs e produzia uma bola nova.
Enquanto isso, virava a esquina carrocinha de cachorro, que levava os bichos para um lugar distante e que, se ninguém os procurassem, diz a lenda, viravam sabão. Era uma revolta geral, a gente vaiava, xingava os laçadores, jogava terra neles e outros atos de vandalismo infantil. Enquanto isso, alheios ao perigo, os cachorros eram escondidos debaixo das pequenas pontes que havia defronte de cada casa.
Uma vez, enquanto os laçadores corriam atrás de um cão fujão, nós abrimos a porta da carrocinha e todos os animais que lá estavam fugiram. A partir daquele dia, as grades levavam cadeados.
Aliás a carrocinha era dois poucos carros que passavam pela rua naquela época. Pela manhã, seo Almeida saia com seu Chevolet 55. Vez por outra ele levava alguns de nós para passear na cidade, onde tinha uma alfaiataria.
Bola nova
- Gol!
- Não foi!
- Foi!
Depois de alguns xingamentos (nada com o que se ouve hoje por aí), tudo terminava “numa boa”, sem agressões.
Era difícil definir se fora ou não gol, já que não havia trave, mas apenas pedaços de pau ou bambu espetados no chão, com uma altura máxima de ½ metro. Isso quando não eram as sandálias colocadas no chão.
Como saber se fora gol ou não!
Mas era dele, saia com seu grito de guerra “gôdimim, gôdimim, gôdimim”. E ninguém discutia validade.
Enquanto estávamos na escola, eu, e alguns dos meus amigos estudávamos no Olavo Bilac, no Canal 1. Outros em escolas da redondeza. As três irmãs da casa 48, uma mais bonita que a outra, estudavam em um colégio de freiras, se não me falha a memória. Quando tinha jogo, que não era todo dia, a rua era uma tranquilidade. Todos respeitavam a todos e não havia imposições. Nem mesmo os pais eram autoritários, apenas exigiam respeito e estudo. A rua manteve suas valetas por muito tempo, assim como seu Almeida a sua tosse que parava nunca. Uma asma brava, dia e noite. Mesmo assim ele nunca deixou de fumar, com o uso de uma piteira. O filho, também era asmático. E foi dos primeiros da turma a começar a fumar Continental sem filtro, (um baita “estoura peito”, junto com o Macedônia).
Uma rua normal. Tão normal que até ladrão galinha passava por lá vez por outra. Mas sem violência, como era antigamente.
Um dia, porém alguma coisa mudou. Foi uma violência, sem sangue, mas com violência. O seu Figo mudou para a esquina do canal e abriu uma venda. Horrorosa, mal cheirosa, como ele. Mas, mesmo assim roubou alguma clientela do seu Maneco, que tinha sua venda na esquina da Rua Santurnino de Brito, homenagem ao criador dos canais da cidade (Santos tem vários canais).
O engenheiro sanitarista Francisco Saturniono de Brito foi o responsável pela implantação dos nove primeiros canais da cidade, entre 1907 e 1911, que vão da orla ao cais. Além da drenagem das águas pluviais, os canais têm função ambiental pela separação das águas de córregos da rede de esgoto. Tudo motivado pela situação sanitária na cidade no final do século XIX. Não havia sistema de esgoto. O lixo era jogado nas ruas e córregos. A cidade foi assolada por epidemias que avançavam pelo interior do estado, ameaçando a mão-de-obra utilizada nas lavouras e tornando o porto de Santos, o principal para exportações brasileiras, o vilão da história.
Seu Maneco era um homem fino, com sua roupa sempre limpa e o cabelo bem penteado e engomado com brilhantina (certamente a Sidepal ou Glostora), que atendia a freguesia com toda fidalguia. E, vez por outra, distribuía balas entre nós. Um cavalheiro!
O dono da bola
Mas um dia, o pior aconteceu na Rua Tarqüinio Silva. Mudou para a casa verde o Mauro, que parecia ser “um cara legal”. Qual o que! Logo no primeiro dia apareceu com uma bola de “capotão” debaixo do braço convidando todo mundo para jogar bola.
E quem não iria? Nunca havíamos jogado com uma maravilha daquelas. Mas fomos enganados pelo mau caratismo do dono da bola. Em primeiro lugar ele disse que ele mandava no time e que todos tinham que passar a bola para ele fazer o gol. Ou levaria a bola embora. Coitado do Gôdimim, que já sonhava em fazer dezenas de gols com aquele bolão. Olhei pra ele e, juro, vi uma furtiva lágrima caindo do seu olho – do direito, se me lembro bem.
Mas como negar a exigência do Mauro, a bola tinha aqueles lindos gomos de couro, ensebados, brilhavam antes de rolar na terra. Bola de campeão!
Para começar, Mauro escalou o time, com Gôdimim no gol, a humilhação suprema para o artilheiro e se colocou como centro avante. E tirou todo mundo das suas posições no time de seis jogadores.
E assim foi, pelo prazer de jogar com uma bola de couro, todos se submeteram à ditadura do Mauro, que parava o jogo a toda hora, invertendo faltas, laterais, dando pênalti quando o goleiro pegava a bola. Fazia de tudo para ganhar o jogo!
E ai de quem não passasse a pelota para ele. Saia do time, sem dó.
Triste!
Um dia, veio o progresso, junto com a vitória da asma sobre o seu Almeida que levou com ele a sua tosse. O asfalto chegou e meus amigos do futebol de bola de meia foram desaparecendo, como eu.
Depois de assistir à cena da molecada jogando futebol na periferia, resolvi passar pela Rua Tarqüinio Silva para “assistir” o Gôdimim fazendo seu gols, ouvir o seu Almeida tossir e ver a minha amada vó Eva cuidando da sua pequena horta, de onde ela colhia as folhas para nossas saladas.
Saudades do Gôdimim!
**A caricatura é um presente do Bird Clemente para o chicolelis, que tem no ex-piloto, seu maior ídolo no automobilismo.
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