domingo, 28 de dezembro de 2025

OS PRIMEIROS MOTORES A ÁLCOOL NO BRASIL. Por Ricardo Hernandes*

Em 1976, o Brasil viveu um momento decisivo em sua história energética e industrial. Em meio às incertezas provocadas pela crise internacional do petróleo, o país buscava soluções que reduzissem a dependência de combustíveis fósseis importados.

Foi nesse contexto que em outubro daquele ano ocorreu o rali de validação dos três primeiros motores movidos a álcool etílico hidratado, desenvolvidos, testados e validados por engenheiros e técnicos do ITA - Instituto Tecnológico de Aeronáutica, de São José dos Campos, liderados pelo criador do projeto, o engenheiro Urbano Ernesto Stumpf, considerado “O pai do motor a álcool no Brasil”. Um episódio pouco lembrado, mas fundamental para a consolidação do etanol como alternativa viável à gasolina.

Chegada dos carros a álcool para apresentação pública em uma unidade militar de Minas Gerais

Contexto econômico e político

A crise do petróleo de 1973 havia exposto a vulnerabilidade da economia brasileira, altamente dependente da importação de derivados de petróleo. A elevação abrupta dos preços afetou a balança comercial e pressionou o crescimento econômico. Diante desse cenário, o governo federal passou a incentivar pesquisas voltadas a fontes energéticas alternativas, culminando na criação do Programa Nacional do Álcool (Proálcool) em 1975.

Entretanto, antes da adoção em larga escala do álcool como combustível automotivo, era necessário provar sua viabilidade técnica e operacional. Não bastavam testes de laboratório: era preciso demonstrar que motores movidos a álcool poderiam resistir às condições reais de uso no território brasileiro.

O rali de validação

O rali realizado em 1976 teve justamente esse papel. Três veículos experimentais, um Dodge Polara, um Volkswagen Fusca e um Gurgel Xavante, equipados com motores desenvolvidos especificamente para funcionar com álcool etílico hidratado, foram submetidos a um percurso longo e exigente, trajeto que contou com  o apoio logístico de uma picape Chevrolet C-10 e uma Chevrolet Veraneio. 

O percurso de 8.500 km, cortando nove estados brasileiros em 21 dias, incluiu diferentes tipos de estradas, variações climáticas e regimes de condução, simulando o uso cotidiano dos automóveis.

"No meio do nada e distante de tudo": registro de uma das paradas técnicas para abastecimento feito com galões de álcool que, em determinadas circunstâncias caiam do céu, de paraquedas, arremessados por aviões da Força Aérea Brasileira. 

Durante o rali, foram avaliados aspectos cruciais, como:

durabilidade mecânica;

desempenho em longas distâncias;

consumo de combustível;

comportamento em partidas a frio;

confiabilidade geral do conjunto motor–veículo.

Resultados e impactos

Rio de Janeiro, em frente às instalações do IPEM. À época, como repórter-fotográfico do Diário do Grande ABC, recebi a missão de cobrir a pauta. Na foto, apareço à esquerda, junto aos integrantes do time de engenheiros e técnicos do ITA, responsáveis pelo desenvolvimento e testes dos motores, promoção e realização do rali; logo após uma das diversas palestras de apresentação do projeto e dos carros para autoridades e empresários.  

Os resultados do rali foram amplamente positivos. Os motores apresentaram desempenho satisfatório e confiável, demonstrando que o álcool poderia ser utilizado como combustível automotivo sem comprometer a eficiência ou a segurança. A alta octanagem do álcool revelou-se uma vantagem técnica importante, permitindo melhor aproveitamento do motor e abrindo caminho para futuros avanços de engenharia.

O sucesso do rali teve impacto direto nas decisões políticas e industriais. Ele ofereceu a validação prática necessária para que o Proálcool avançasse e para que as montadoras passassem a investir na produção de veículos movidos exclusivamente a álcool.

Legado histórico

Poucos anos depois, em 1979, o Brasil lançaria o Fiat 147 a álcool, o primeiro automóvel produzido em série no mundo movido exclusivamente por esse combustível. Esse avanço não teria sido possível sem a experiência acumulada no rali de 1976.

O rali de validação dos motores a álcool representa, portanto, um marco histórico na trajetória brasileira rumo à autonomia energética e à inovação tecnológica. Seu legado permanece vivo até hoje, especialmente na consolidação da tecnologia Flex Fuel, que transformou o Brasil em referência mundial no uso de biocombustíveis.

Esse episódio evidencia como decisões técnicas, quando aliadas a políticas públicas estratégicas, podem produzir impactos duradouros na economia, na indústria e no meio ambiente.

* Ricardo Hernandes (na foto aos 24 anos de idade) jornalista há 57 anos, conta com passagens pelos jornais O Repórter e Diário do Grande ABC, Assessoria de Imprensa da General Motors do Brasil, Coisas de Agora Comunicação, TV São Caetano, NET TV, e também como colaborador e prestador de serviços em órgãos públicos e empresas privadas.

Fotos: ©Ricardo Hernandes

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