O aniversário de 25 anos da queda do Muro de Berlim, em 9 de novembro de 1989, me leva a perceber que envelheci. Isso acontece com todos, mas ninguém gosta de prestar atenção. Principalmente no meu caso, dançarino de tango... A gente gosta de estar com o corpo em forma para bem desempenhar nas pistas de dança. É uma das coisas boas, entre tantas outras, que a dança nos proporciona.
Acho muita graça dessa turma que ainda fala em “perigo comunista”. Ou estão blefando, para achar desculpa para golpe, ou não foram avisados. Isso acabou há muito tempo, desde que o Leste europeu desabou de podre, como se fosse de barro, sem que ninguém fizesse um discurso ou desse algum tiro em defesa do sistema. Foi o sinal mais flagrante de que não deu certo, depois de 70 anos em que dividiu o mundo e fomentou as aspirações de uma parte dos jovens da minha geração.
Como nasci e sempre vivi no capitalismo, não precisou ninguém me contar: este sistema é uma porcaria, com poucas vantagens e muitas desvantagens. Basta o problema da violência urbana para provar isso. Ou dar uma volta pela periferia, vendo a miséria.
Na minha juventude, por um bom tempo, acreditei que o outro lado, o chamado comunismo, poderia ser melhor. Afinal, o que poderia ser ainda pior do que o capitalismo?
Pois, aquilo era. Só a KGB, a polícia política, tinha 70 mil agentes na Alemanha Oriental para bisbilhotar a vida alheia. Ou seja, 70 mil improdutivos pagos pelo Estado. Certamente todas as amantes dos chefões estavam lá. Aquilo poderia ser qualquer coisa, menos o verdadeiro comunismo.
Quando eu lia a contrapropaganda, em revistas como “Seleções”, a “Reader`s Digest”, (guardo várias e acho boa para treinar o inglês), pensava que ali havia muita mentira, para desmoralizar nossos sonhos. Até que em 1974 percorri de trem a antiga Alemanha Oriental, então comunista, da fronteira francesa até Berlim, nas proximidades do mar Báltico e da Polônia. Foi a primeira de três visitas que fiz a Berlim, cada uma em época completamente diferente.
O muro estava lá desde 1961, fortemente guarnecido por soldados, e vivi a aventura de atravessá-lo. Falo aventura como brincadeira. Foi tudo muito fácil, em ônibus de turistas.
Mas voltemos, antes, ao trem. Foi ali que desmoronou minha fantasia sobre o comunismo europeu. Vi naquela viagem que, tirando talvez alguns exageros, muitas coisas que a Seleções contava eram verdade. No nosso trem havia guardas armados com metralhadoras. Quando o trem parava nas pequenas estações do caminho, os guardas desciam e ficavam nas plataformas, de arma embalada e dedo no gatilho. Ninguém podia descer sem autorização. E eram raros, às vezes nenhum, os passageiros que embarcavam. Aquela imagem de opressão militarista não poderia, jamais, merecer qualquer simpatia ou justificativa da minha parte. Sobre o caminho, vale contar que havia uma lavoura exuberante, que se perdia de vista no horizonte. Isso mostrava que existia um processo de produção organizado e muito intenso.
Berlim ficava lá no meio da Alemanha Oriental, bem para o Leste, dividido entre os lados comunista e capitalista. Ou seja, era meia cidade capitalista no meio de um vasto território comunista.
Como ainda não existia Dubai, Berlim Ocidental era a cidade mais artificial do mundo. Feita para ser um grande shopping center colorido a céu aberto, para deixar babando quem morava do outro lado muro. Era claramente uma vitrine do capitalismo, com seus seus sonhos de consumo, que é tudo que oferece à humanidade como caminho para a felicidade. E como tudo vinha de longe, muita coisa por avião, era uma cidade muito cara.
Berlim Oriental, coitada, era cinzenta, parada e triste. Em ruas quase vazias, algumas senhoras de lenço enrolado na cabeça caminhavam com sacolas. Visitamos (estava com minha ex-mulher Ignez) a cidade numa excursão, em busão, único jeito de entrar. De outro modo era impossível, não passava pelo muro. Os alemães que cruzavam tinham passe especial para isso. Observei que os táxis eram escassos, e um detalhe chamou muito minha atenção: a vista de uma estação de trens com a composição tracionada por maria fumaça, a velha locomotiva a vapor. Aqui, essas máquinas já eram peça de museu ou mera atração turística em algumas cidades do interior. Aquela fumaça preta subindo no meio da cidade ficou na minha memória como a evidência de que ali o tempo tinha parado. Em contraste com a tecnologia soviética, que disputava com os Estados Unidos a corrida espacial.
Quando nosso ônibus chegou no famoso Charlie Point, a passagem do muro, passamos primeiro pelo setor militar francês, depois inglês e finalmente norte-americano. Fomos identificados e liberados para continuar. Poucos metros à frente, soldados comunistas fizeram nova identificação e uma varredura completa no veículo, inclusive por baixo. Todos os livros, jornais e revistas que tínhamos foram recolhidos para devolução na saída. Mas as máquinas fotográficas foram permitidas. As filmadoras ainda não existiam, ninguém tinha. Nosso ônibus levava turistas das mais diversas nacionalidades. Os únicos brasileiros éramos nós.
Hoje o Charlie Point é atração turística, com garotos fantasiados de soldados e fuzis de escola de samba, para ganhar moedas dos turistas. Bem diferente daquele 1974, quando a tensão ali era visível e real, com inimigos armados a poucos metros uns dos outros.
O Muro de Berlim cortava a cidade respeitando rigorosamente o traçado da fronteira. Por isso, em alguns pontos, varava prédios, que tinham sido interditados e tiveram suas portas e janelas cimentados. Aquilo deixava esses prédios com uma aparência muito feia e estranha, parecendo fantasmas na paisagem urbana.
Além do muro, com arame farpado e torres com holofotes e metralhadoras, havia em muitos pontos a terra de ninguém, uma segunda faixa de terra fechada e com minas explosivas. Em diversos pontos, afastados do muro, no território Ocidental, havia palanques altos, de madeira, de onde se podia avistar o outro lado.
A gente fitava de longe os guardas, sem medo, éramos meros turistas, e eles também ficavam nos olhando, como se fôssemos, todos, os bichos de um zoológico. Mas não dá para dizer que era divertido, eles tinham uma expressão agressiva. E armas nas mãos.
Ficamos cerca de cinco horas rodando por Berlim Oriental, incluindo almoço num shopping, onde tudo era muito simples e austero, como no resto da cidade. Para fotos não havia qualquer restrição. A maior parte dos monumentos e prédios remanescentes dos tempos da II Guerra Mundial estavam na Berlim Oriental. Isso se explica porque o Exército Vermelho foi o primeiro a invadir a cidade, provocando o suicídio de Hitler, da sua mulher Eva e de todos os oficiais que estavam em seu bunker.
Na saída, novamente o ritual da revista e identificação, pelos soldados de ambos os lados. Recebemos nossos impressos de volta.
As justificativas para a existência do muro, erguido pelos comunistas, eram duas: evitar a evasão de mão de obra e também o consumo de antigamente, quando as pessoas ganhavam numa moeda e iam gastar do outro lado, onde havia outra moeda. Claro, todo mundo procurava o melhor preço e ofertas. Fica óbvio que o lado Oriental levava a pior em sua economia, com a evasão de divisas.
Meu segundo contato com o chamado mundo socialista foi Cuba, em 2004. Percorri de carro mais da metade da ilha, em 18 dias. Uma viagem incrível, para jamais esquecer. Mas aí é tema para outra crônica.
* Milton Saldanha, 68 anos, gaúcho, é jornalista desde os 17 anos. Trabalhou na imprensa de Santa Maria (RS) e Porto Alegre. Vive em São Paulo há mais de 40 anos. Passou por muitos empregos, entre eles Rede Globo, Estadão, TV Manchete, Diário do Grande ABC, Jovem Pan, revista Motor3, Ford Brasil, IPT, Conselho de Economia e vários outros, inclusive na Ultima Hora. Ao se aposentar, criou o jornal Dance, já com 19 anos. É autor dos livros “As 3 Vidas de Jaime Arôxa” (Editora Senac Rio); “Maria Antonietta, a Dama da Gafieira” (Phorte Editora) e “O País Transtornado” (Editora Movimento, RS) onde conta 60 anos da recente História brasileira. Participou da antologia de escritores gaúchos “Porto Alegre, Ontem e Hoje” (Editora Movimento)
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